quarta-feira, outubro 03, 2007

Luciano Huck não morreu. Ele apenas foi assaltado.

O apresentador de programa vespertino da rede Globo Luciano Huck é um sujeito muito empreendedor. Além do seu salário Global (que não deve ser nada baixo) Luciano também toca uma longa série de outros projetos bem rentáveis. Em decorrência disso, conseguiu ficar bastante rico. Bem, não como Antônio Ermírio de Morais ou o finado “jornalista” Roberto Marinho, em cujo império de telecomunicações hoje trabalha. Porém, Luciano faz parte do diminuto grupo de brasileiros que podem se dar ao luxo de ter um Porsche ou vestir Armani (coisa que aliás não sei se faz, visto que não leio a revista Caras).

Ainda que Luciano tenha méritos e talentos indiscutíveis, que o conduziram em sua ascensão social meteórica (coisa que não se pode dizer tranqüilamente dos papas da mídia no Brasil), pode-se dizer que os mesmos talentos não se aplicam à escrita de artigos em jornais. De fato seu artigo na Folha de São Paulo do dia primeiro de Outubro não tem nada de mais à primeira vista. A não ser pelo fato de transparecer uma certa falta de traquejo. Tudo bem, dado que o apresentador não está pleiteando um Nobel de literatura e sim fazendo um desabafo sincero em um dos jornais de maior circulação aqui de Terra Brasilis.

Aqui começa a parte interessante dessa história: Luciano se recusa a andar de carro blindado “por filosofia”. Desde Nietsche a filosofia não era assim tão perigosa. O fato de um sujeito apenas rico agir assim já seria suficiente para que fosse considerado doido. Mais ainda no caso de Huck, considerando sua visibilidade e conseqüentemente a de seu dinheiro. Porém, publicar essa decisão de dispensar a blindagem em um dos jornais de maior circulação do país é praticamente eutanásia. A não ser que nesse mesmo dia ele tenha desistido da militância nos "sem blindagem" (MSB). De qualquer forma, tomara pra ele que a tese daquele Antônio Carlos de Almeida esteja mesmo correta e que os sequestradores não sejam capazes de ler e compreender o jornal.

Luciano se diz indignado com a violência na cidade de São Paulo. E ele tem razão. O curioso é que a maioria das pessoas com seu poder econômico já resolveram seus problemas de insegurança há muitos anos. Como? Através do uso indiscriminado de SUV’s que rodam com diesel subsidiado, placas de Curitiba (para não serem importunados por multas ou IPVA extorsivo) e blindagem à prova de mísseis intercontinentais e minas terrestres. Como se não bastasse todo esse aparato, está na moda entre os ricos pagar escoltas armadas para segui-los aonde quer que resolvam ir (se bem que com esse trânsito não é que possam ir mesmo muito longe).

Outro dia mesmo, por exemplo, tive a infeliz experiência de me interpôr entre Ana Maria Braga em sua Mercedes-Benz S600 de 800 mil reais e sua penca de capangas particulares em um Toyota Corolla preto. Eu tinha acabado de voltar de um ano vivendo na Europa. Lá ter um carro como esse Mercedes não quer dizer muita coisa. Por isso não dei a mínima importância ao veículo prateado naquela ocasião. Na verdade eu queria apenas ser gentil com uma senhora que estava já sem esperanças de conseguir passar no maldito cruzamento sem farol perto do Panamby. Depois dela e outros quatrocentos carros passarem na minha frente, percebi que aqui em São Paulo não dava pra ficar pensando muito no civismo e nos bons modos, senão quem não saía do lugar era eu.

Mas antes que avançasse com o meu carro e bloqueasse o fluxo na perpendicular, a maldita barca Mercedes se enfiou na minha frente como se fosse um Smart. Depois da peripécia dessa outra funcionária da Globo, tive cinco minutos de terror com aquele bando de maníacos piscando farol e colados na minha traseira como se eu fosse um criminoso, sequestrador de celebridades e tivesse furado o comboio do presidente Bush. É que ao contrário de Luciano Huck, é assim que a imensa maioria dos ricos leva a vida aqui por essas bandas. Felizes, satisfeitos e cada vez mais ricos e de bem com a vida, já que dinheiro atrai bons fluídos como o petróleo do tipo light e Veuve Clicquot.

De modo análogo, os moradores das favelas (gente predominantemente muito boa ao contrário do que diz o tal Almeida aos ávidos leitores de fim de semana) também estão dando o seu jeitinho pra se defender dos criminosos. Porém, muito menos glamuroso e eficiente que o dos ricos. Tratam-se de milícias, ou seja, grupos de foras-da-lei armados até os dentes que são pagos todos os meses, como o carnê do baú, para proteger os moradores dessas comunidades. Isso acontece porque a polícia está toda nas mãos dos narco-traficantes que operam dentro e fora das cadeias.

A classe média por sua vez tenta em vão reforçar suas guaritas com seguranças e colocar dois ou três portões elétricos em seus edifícios, além de câmeras e circuitos internos de TV que oneram muito os condomínios. Há prédios em que você pode inclusive acompanhar ao vivo a chegada do seu convidado, desde a entrada do prédio até à porta da sua casa por um canal da TV. Mas em matéria de segurança, digamos que o artífício é mais eficaz no controle do namorado da sua filha do que dos outros bandidos que por ventura resolvam invadir o condomínio.

Por isso, a sensação de insegurança ainda é grande demais e parecemos estar sempre um passo atrás do crime. Em face à inépcia ou conivência do Estado, a população de todas as classes sociais está se virando para levar a vida de maneira relativamente normal. Desnecessário dizer que os piores efeitos dessa guerra civil se fazem sentir nas favelas e não no Jardim Europa. Desnecessário também dizer que as reclamações vindas do Jardim Europa são escutadas com muito mais atenção nas altas esferas do poder público.

Então, lendo aquele relato melodramático do heterodoxo filósofo Luciano Huck (é normal ser meio piegas quando alguém te põe o cano do 38 na cara), tive uma idéia. Quando você e seus amigos são assaltados e levam seu relógio da Diesel, ou o laptop que você nem acabou de pagar ou o iPod que seu primo trouxe de muamba da Disney, não há espaço para chorar as pitangas em um quarto de página da Folha de São Paulo. Na verdade a página no jornal é apenas uma minúscula amostra do que o descontentamento dos ricos pode fazer. Imagine se o Sílvio Santos não pudesse mais ter segurança particular e carro blindado. Certamente ele não mudaria correndo de país. O país é que teria que mudar correndo. Por isso, seria muito benéfico que todos os ricos saíssem de suas bolhas de vidro à prova de bala e caíssem na nossa real. Também talvez fosse interessante que a classe média-alta saísse um pouco de trás do celofane preto dos vidros dos seus sedans médios e fosse dar um rolê em Heliópolis, caindo na real dos favelados.

Claro que se isso aqui fosse uma democracia de verdade, não haveria a necessidade de todos nós termos o tipo de prerrogativa que tem o Huck e sua turma com os meios de comunicação, porque de quatro em quatro anos todo mundo tem, em tese, exatamente a mesma chance de escolher aquele pessoal de terno e gravata que nos representa no congresso, nas assembléias legislativas ou na câmara de vereadores, blá blá blá....

O caso é que apesar da razão de ser dessas instituições ser a de nos bem representar, os lobbies, as negociatas, a corrupção e o tráfico de influência nos distanciam cada vez mais dessa gentalha. Apesar do benefício aparente, isso não é bom. Daí o que a gente faz é tentar resolver as coisas como dá, de preferência do modo mais rápido, indolor e privado possível. Ou seja, se a gente é classe baixa, a gente paga a milícia, a polícia e o traficante. Se é média, a gente não pára no farol depois das 11 da noite, evita deixar o carro muito limpo, evita trocar de carro, anda de janelas fechadas cobertas de celofane preto. Se a gente é rico, a gente anda de Audi blindado e tem uma porrada de seguranças armados na porta do nosso prédio. Se a gente é banqueiro, anda de helicóptero e passa boa parte do tempo fora do país onde se sente de novo o doce gostinho da normalidade.

Porém, no final das contas, por melhor que seja a blindagem, o celofane, o capanga ou o portão de ferro de que pudemos dispor, melhor seria não precisar deles em primeiro lugar. E para isso não adianta inventar cópias pirata da ROTA ou tratar ainda pior os suspeitos de crimes por serem pretos e pobres ou desrespeitar os direitos humanos dos presidiários como sugere Luciano ao conclamar a tropa de elite, indignado com a perda do seu Rolex de 5000 dólares. Huck não sabe que a prescrição fascista das tropas de elite da vida não vai resolver coisa nenhuma. Mas não precisa. Luciano não é especialista em segurança como espera-se que seja o Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Por isso, o que ele tem que fazer é convidar os amigos high society a também torrar bem o saco do Governador, do Presidente e de todo mundo que realmente tenha poder pra mexer as peças desse tabuleiro.

Discordo daqueles que criticaram Luciano pelo seu artigo. Eu o aplaudo e peço que todos os ricos comecem mesmo a reclamar. O começo da solução de todo esse imbróglio está mais nas mãos deles do que nas nossas, sem querer tirar o meu da reta. Os ricos têm que chorar, gritar e espernear o mais alto que puderem, como fez Luciano na Folha de anteontem.

Conclusão: a solução para o problema da segurança nas grandes cidades brasileiras é acabar com os carros blindados. Mas é claro que também não faria mal nenhum investir uns 30 bilhões de reais em educação e pagar aos professores de todos os níveis um piso salarial de 10000 reais. Garanto que fazendo isso, em 10 anos a violência urbana iria minguar no Brasil como gelo na sopa quente.

segunda-feira, outubro 01, 2007

Bocca di Rosa

Que me sobrem os bons exemplos
Por falta de meios de dar os maus
E viver de conselhos e retóricas
E mitos e estrelas e lágrimas

Que me faltem as dores do parto
A glória dos célebres
A inteligência dos enxadristas
A fé dos romeiros em dia de procissão

E talvez eu possa pensar no além mar
De um mar de luz e sombra perdido no tempo
Desfeito no ar como tudo que é sólido
Sou só eu na minha solidão particular
Que Deus exista e se manifeste nas brumas do outono
Que cheguem na noite longa de um dia qualquer

segunda-feira, setembro 17, 2007

Tourada

Ir a uma tourada sempre foi algo impensável para mim. Muito porque em minha casa sempre se cultivou o amor pelos animais. Esse amor se traduziu em princípio que norteou e sempre norteará a maneira pela qual julgamos poder tratá-los. Por essa razão, por mais bonitos e coreografados que se pudessem se mostrar os movimentos feitos pelo matador ao levar a cabo seu ritual de tortura e carnificina, seria impossível que eu mudasse de idéia em relação a esse evento tão infame quanto anacrônico que no terceiro milênio ainda tem lugar cotidianamente em plena União Européia, bastião da democracia, da civilização e do bem estar social.

Porém por muito receio de mostrar-me rude ao meu gentil anfitrião Sevilhano acabei por aceitar o convite para um espetáculo que se dá várias vezes por semana em arenas espalhadas por toda a Espanha. Aceitei, mas não fiquei em paz com a minha decisão. Nas duas horas precedentes ao acontecimento, eu que sou homem de pouca fé me rezei pra ser salvo da fria por um pé dagua, como os que me acompanharam por todo o resto da viagem.

Entretanto, como sempre é perigoso sujeitar o próprio destino às intempéries, especialmente em tempos de aquecimento global, também pensei em mil desculpas para escapar da roubada. A diplomacia falou mais alto a vontade acabei aceitando o evento como um desafio sórdido à minha própria natureza. Lá fui eu com Paco à arena de touros.

Ao baixar na estação Vestas do metrô, avistei já bem de perto a arena que seria o palco do infortúnio. Esta lembrava em forma o Coliseu romano assim como também lembraria o espetáculo de sangue ao que dentro daquele se passava quase dois mil anos atrás.

Minha torcida agora, posto que uma hecatombe natural não se apresentara, era para que o touro matasse o toureiro ou, melhor ainda, que o invalidasse de maneira permanente e assaz dolorosa deixando em sua carne um inexorável lembrete. Todavia muitas surpresas desagradáveis ainda esperavam por mim naquela fatídica noite Madrilenha.

A primeira delas foi que a sessão incluiria o suplício e a morte de não apenas um mas de seis animais. Então não pensei que fosse aguentar tamanho despautério. Porém, sempre tentando ver o lado bom das coisas, imaginei que seria então seis vezes mais provável que o destino do cretino espadachim fosse selado em saborosa tragédia. Mas como costuma acontecer em todo canto, a justiça divina não se fez notar naquela noite fria de maio. Por isso me contento em contar só uma das sessões, já que as outras foram todas iguais, fora a cor do boi e da roupa do toureiro.

Com o coração partido mas ainda não resignado, adentrei na praça de sangue. Ao me encaminhar ao meu lugar marcado no bilhete com holograma e tudo, vi que a estrutura era muito semelhante a dos estádios de futebol. Isso me deu alguma esperança de não conseguir ver direito o que ia se passar lá embaixo.

Porém ao chegar ao patamar em que se encontrava meu lugar e me aproximar do acesso em arcada por onde chegaria ao meu assento de cimento, descortinou-se uma vista desconcertantemente nítida e próxima da arena. Por isso tive que começar a pensar em outras formas de evitar a visão cristalina do massacre. Lembrei-me de quando estivera na mesma Espanha, mas na Catalúnia (onde aliás as pessoas não se consideram espanholas de jeito algum), porém no estádio do Barça para uma bela partida entre o time da casa e o Maiorca. Nessa ocasião, quando olhava o campo através da câmera para tentar fazer algumas fotos, via apenas pontinhos azuis e grená no fundo verde macio. De maneira que se o touro não tivesse muita sorte, poderia me poupar da vista horrenda com este simples mas eficiente estratagema.

E logo começaria o inferno bovino. Porém só depois de uma série de firulas e música que vinha de um embaraçoso alto falante. Aqueles animais todos morreriam ao som de uma medonha gravação para delírio da turba sedenta de sangue. A turba contudo era diferente daquela do Coliseu Romano. Na verdade eram bem vestidos e bem alimentados cidadãos Europeus que sentavam-se confortavelmente sobre almofadinhas alugadas. Muitos fumavam preguiçosos os seus charutos e bebiam uma San Miguel geladinha. Não há restrição ao álcool já que estão todos do mesmo lado.

Entraram os cavalos cobertos com uma armadura de couro e provavelmente algum material de alta tecnologia e também os matadores empedernidos em seus trajes de gala e um montão de outros otários que eu até ali não sabia a que vinham. Aliás não sabia também que os cavalos fossem participar da coisa toda.

Depois de uma dança metódica e meticulosamente coreografada e de uma volta sobre um círculo de breu perfeitamente desenhado ao som de uma música que soava folclórica, os animais pretensamente dotados de faculdades intelectuais superiores abandonaram mais uma vez o recinto. A arena ficou ainda mais vazia. Com o soar de uma trombeta eletrônica, abriu-se uma das porteiras de acesso ao palco de onde saiu o primeiro boi. Seu porte era impressionante. Seu pelo todo negro luzia como um diamante bruto. Tinha cinco anos e dois meses de idade. Pesava quase seiscentos quilos. Trazia já nas costas uma ferida aberta de onde pendia uma estreita faixa de pano vermelho e de onde vertia manso e quase incólume um tímido fio de sangue. Seus olhos transbordavam medo. Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. Talvez a mente do boi não alcançasse o calvário dos próximos e últimos momentos da sua curta vida.

Não sei ao certo o que via o touro, porque não conheço bem a fisiologia dos bovinos. Mas seus músculos resplandeciam em contrações violentas à medida que quase flutuava em galope pelo círculo de morte à procura de uma saída. Era como uma sinfonia de tendões e nervos e articulações que exalava vida por todos os poros.

Mas saída já não havia, e naquele momento descobri pra que serviriam aquele monte de pessoas que desfilavam calmamente quinze minutos antes, também ricamente vestidos e adornados com plumas e paetês. Ao redor do círculo de areia havia cinco ou seis pequenas câmaras onde se encontravam os tais sujeitos. Medindo a distância cuidadosamente, de maneira que a velocidade do touro não fosse suficiente para alcançá-los em hipótese alguma, puseram-se os toureiros sobressalentes e de baixa patente (os picadores) a provocar o animal com suas capas voltando correndo ao abrigo de pau de forma concertada e vergonhosa.

Para minha surpresa, as capas ostentadas não eram vermelhas e sim de um cor de rosa irritantemente brilhante. Esta fase da chacina, ainda que já bastante injusta, pois que se tratavam de cinco pessoas presumidamente racionais ainda que não necessariamente inteligentes, e que se escondiam atrás de paredes de dez polegadas de espessura, era de fato a melhor chance que o touro tinha de se defender e impingir algum dano aos seus numerosos algozes.

Entretanto a física Newtoniana se fizera implacável como uma barreira perfeita contra uma possível baixa humana. Apesar de pertencer a mesma espécie de Van Gogh e Velasquez, senti vergonha de ser humano também.

Abriu-se a porteira novamente e de lá surgiu um sujeito gordo e patético com uma lança nas mãos montado em um magnífico corcel negro todo coberto de couro e espuma. Com uma sineta amarrada à panturrilha, o cavaleiro se pôs a fazer barulho para atrair a ira do touro que ante ao perigo já se mostrava disposto a usar de seus 600 quilos para tentar se salvar.

Ao investir contra o cavalo e não contra o asno que o montava, recebeu o animal os primeiros ferimentos importantes. O cara da lança enfiou bem fundo o espeto na carne do touro que no afã de se defender, investiu com tamanha violência contra o cavalo que este foi derrubado a uns 6 metros de distância do lugar do choque. O sujeito também caiu. Agora era a hora! Finalmente uma boa chance para o boi! Porém, logo se apresentou uma dezena de pessoas para resgatar o cavalo, já que seu ventre nú seria um alvo mortal de uma chifrada certeira. O tipo da sineta foi se esconder atrás do muro de pau até que as coisas se acalmassem.

O touro, apesar de forte como Sansão estava já ferido de morte, e seu sangue jorrava como de um riacho entre as pedras dos corações daqueles homens que vibravam como se vissem um gol do Pelé. Meus olhos se encheram de lágrimas que escondi com cuidado como se fossem a prova de um crime. Só que o criminoso não era eu.

Queria poder fazer algo e poupar o animal daquele sofrimento idiota. Dar tiros de espingarda para o ar, gritar, botar fogo no jornal que tinha ao meu alcance. Permaneci calado e contrariado rangendo os dentes. Fui covarde cúmplice daquela sandice humana coletiva sem entender como alguém (e pelo visto tanta gente) poderia apreciar tamanho descalabro. Aquele sofrimento todo deveria ter uma razão. E uma que não fosse fútil como uma diversão para as horas de ócio. Aquilo só se justificaria pela fome ou pelo medo. No caso não se tratava de nenhum dos dois.

O galope do touro já não tinha o mesmo ritmo. O animal estava visivelmente debilitado. Valendo-se disto, atraíam as bestas ao touro para impingir-lhe mais ferimentos com as bandeirinhas. A mesma velha tática de esquiva funcionava ainda melhor contra um animal machucado e desorientado. Todo coberto de sangue que agora jorrava de múltiplas chagas, o animal foi abandonado de novo na praça redonda e sem saída, sozinho.

Então entrou de sobressalto o matador por uma das seis tímidas portinholas que davam acesso ao centro da famigerada arena. Vinha cintilante como uma bailarina do Bolshoi porém com espada em punho e capa, agora sim, vermelha. O soar da trombeta era idêntico ao clichê intencional das trilhas do Tarantino para o duelo final. Só que não havia duelo. Só um animal herbívoro e debilitado e um sujeito de espada na mão. O animal por alguns segundos titubeou em atacá-lo. Porém os gritos e os movimentos da capa cuidadosamente treinados foram suficientemente eficientes para provocar uma última e frustrada tentativa de defesa. As últimas gotas de vida do animal eram derramadas nesse balé macabro e perturbadoramente lento. A cada vã investida do touro emergiam gritos da platéia em uníssono olé. Ensurdecedor. Eu também estava só.

Regozijando-se com a aclamação do povo e decidido a fazer a derradeira desfeita à criação, o matador, agora a distância aparentemente curta, olhava dentro dos olhos lacrimejantes e cansados do boi. Este permanecia imóvel, apenas respirando pesadamente. O vigor do animal tingia calmamente o chão. Não entendia o por quê de tamanha brutalidade. Cara-a-cara com o homem da espada, o touro respirava com dificuldade.

O silêncio agora era ensurdecedor. Parecia uma eternidade. O matador, apontava sua espada para o animal apático e vencido. Com um golpe certeiro a lâmina penetrou rápida entre as escápulas do boi e atingiu seu coração. Depois de poucos segundos de suspiros e agonia a vida finalmente cessou. Soaram novamente os clarins artificiais. O touro antes resplandecente e negro não passava agora de uma carcaça retalhada e encardida.

Antes de ser rebocado por três cavalos imensos, o touro teve sua orelha direita cortada como prêmio à perícia de seu algoz. Este deu uma exultante volta olímpica à luz dos holofotes em meio a uma chuva de flores e de lenços brancos. Os gritos de euforia cingiram novamente o ar celebrando a grandeza de ser humano.

terça-feira, setembro 11, 2007

Do panfleto ao romance

Pessoas que por ventura ou desventura se achem a ler essas palavras de alguém tão longíncuo em todos os sentidos,

O velho "eu" prometeu manter a tradição de priorizar a dissertação à narração e de não fazer deste espaço remotamente visitado, um diário daqueles com capa de plástico cor de rosa e um cadeado simbólico onde as meninas de menos de doze anos costumam, ou costumavam, relatar as suas mais interessantes aventuras e seus mais secretos pensamentos. Porém, como disse o pré-socrático Heráclito de Éfeso há mais ou menos 2500 anos, tudo flui, nada permanece. Por isso, para não desafiar um filósofo de tamanha envergadura, decidi lançar-me um pouco nas águas da narrativa. Que Deus me ajude na empreitada bem como aos meus pobres e parcos leitores. Antes, porém, gostaria de explicar o motivo dessa minha derrocada como crítico racional e pragmático.

Algumas pessoas têm naturalmente o dom de encontrar histórias. Meu amigo Marcos é um exemplo, meu irmão quando era pequeno é outro. Essas pessoas não precisam ser necessariamente narradores espetaculares, tecnicamente falando. Apenas, me parece, possuírem um desejo intenso de compartilhar de suas experiências que se acumulam com o passar do tempo. Outras pessoas, como a minha irmã, vão um passo além, e usam de estórias não necessariamente reais como alegorias para na verdade dissertar. De qualquer maneira, supondo-se ser possível ingressar nesse universo pelo mero, ainda que intenso, artifício da vontade, imagino que o primeiro passo seja encontrar as histórias para depois talvez ser capaz de manipulá-las, montando e desmontando suas engrenagens com o intuito de provar determinado ponto.

Não sei ao certo quanto tempo a coisa toda deve levar. Na verdade não sei nem se a hipótese inicial se sustenta. Seja como for, já que tenho algum tempo livre, por que não arriscar um pouco? Além disso, ainda que não me seja possível alcançar altos níveis de proficiência, gostaria de compartilhar de algumas facetas da vida por essas bandas que só por muito diferentes da nossa realidade brasileira podem ter para alguns um interesse baseado na estranheza. O texto escrito também apresenta a vantagem de poder ser abandonado e eventualmente retomado sem maiores constrangimentos para ambas as partes, (recomendo fortemente que esse recurso seja utilizado livre e profusamente sem dor de consciência).

domingo, março 11, 2007

O Sol

Depois de muito tempo ausente, o Sol resolveu dar o ar da graça. É engraçado porque em geral não vou muito com a cara dele. Mas aqui essa luz dourada parece valer mais que o vil metal com que compartilha cor. Ir lá fora sem maiores casacos e sobre casacos também é algo que nunca imaginei apreciar especialmente. As coisas, as pessoas e as necessidades mudam apesar de continuar tudo essencialmente igual. Aqui e ali ainda há alguns montes de neve bastante encardidos pela sujeira das ruas. A paisagem nevada é de fato muito interessante apesar do indissociável monocromatismo. Apesar disso o cotidiano cheio de gelo é bastante complicado e cansativo. A estética costuma de fato impor uma série de restrições de cunho prático. No meu universo onde antes havia somente os sapatos apertados, calças justas, jaquetas quentes demais acrescentei a paisagem congelada com pés molhados, chão escorregadio e tombos nem sempre tão engraçados.