Depois de passar a terceira noite seguida na mesma cidade (ou até no mesmo país) – por mais pedante que isso possa soar, acho que estou habilitado a fazer duas coisas. A primeira seria um diário de viagem contando as coisas pitorescas de cada lugar em que estive. Tenho um monte de fotografias e comprovantes de cartão de crédito como minhas provas irrefutáveis. Não que eu esteja desmerecendo o papel de um Pero Vaz de Caminha ou de outros viajantes que meticulosamente descreviam e narravam de maneira exaustiva, tudo aquilo em que deitavam olhos. Mas acho que não tenho credenciais para fazer desse relato algo digno de vossa leitura. Por isso vou pulando para a segunda opção, uma revisão crítica e geral de tudo em que deitei meus olhos. Alguns de vocês podem achar isso incrivelmente chato além de pretencioso da minha parte. Desculpem-me se não lhes dou ouvidos e prossigo no meu intento porque acho que talvez o que eu tenha a dizer possa interessar a alguns poucos (e muito mais ainda porque me deu vontade). Então sem mais delongas, vamos ao ponto. Quero começcar com a primeira coisa que me veio à cabeça ao desembarcar de pileque em Milão: o céu é igual! Essa observação é tão pueril e idiota quanto poética. Todo mundo sabe que o céu é azul com nuvens brancas no mundo todo. Pra variar, se esse for o caso, acabei sendo o último a saber.Mas não estou introduzindo esse fato apenas como um souvenir da minha chegada no velho mundo. Ou na cabeça deles só mundo. Na verdade o que acabei de relatar nada mais é que um fragmento de toda e qualquer experiência de ruptura que os homens fazem desde os primórdios. A questão que isso traz é bastante simples e ao mesmo tempo difícil de assimilar: Por que estamos do outro lado? Em outras palavras, o que faz alguém que nasce desse lado do Atlântico ser diferente? Até que ponto somos os mesmos homo sapiens com trocentos bilhões de neurônios? Fiquem tranquilos, não vou introduzir aqui nenhuma teoria neoracista de que possa me arrepender mais tarde. Mas caramba! Por que raios essa diferença toda? Certamente as pessoas mais afeitas as ciências e ao arcabouço teórico oficial têm a resposta na ponta da língua. A explicação é histórica! Quem sou eu pra contextar! Mesmo assim o ponto de interrogação pairou sobre a minha cabeça como nunca nos últimos 30 dias. E assim como a pessoa que recebe a notícia de que vai morrer logom eu passei por diversas fases. A primeira foi o deslumbramento (que sobreviveu até mesmo à perda do vôo de conexão e das bagagens). Depois veio o alívio e uma sensação de liberdade que nunca sentira na vida. Daí, como toda pessoa que usa das suas faculdades cognitivas para o próprio mal, comecei a temer pelo momento de atravessar de novo esse muro invisível e voltar para o lado B, de onde, atestam todos os meus documentos, não posso escapar. Entrei na próxima fase, muito menos agradável que a primeira: o medo e a revolta! Por que não posso ficar? Quem essas porras de papéis pensam que são pra me dizer onde eu posso eu não ficar? Por que eu não nasci aqui? Por que os portugueses foderam com meu lugar? Sou uma boa pessoa! Nunca prejudiquei ninguém de propósito! Será que se eu me esconder bem escondido eles vão vir me pegar? Vão dizer que meu papel não tem a cor ou o carimbo certos. Por que? Isso durou bastante tempo mas não foi páreo pra cidade luz, o Louvre, o Orsay, o Jd de Luxembourg! E lá estava eu de novo embasbacado com o que os homens foram capazes de fazer. Homens como eu e como vocês. A maioria deles nunca teve passaporte, nem visto, nem carimbo, nem selo.