domingo, julho 16, 2006

Mar adentro


Esse abismo ("Direito à morte") é tratado com maestria no filme “Mar Adentro”(Alejandro Almenábar, Espanha, 2004). E de uma faceta bem humorada e bastante leve (na medida em que o tema permite). O enredo gira em torno de Ramón Sampedro (Javier Bardem), um pescador espanhol de meia idade que passou os últimos 26 anos preso a uma cama paralisado do pescoço para baixo. Aos 19 anos sofreu um acidente (parecido com o do Marcelo Rubens Paiva). Num distraído mergulho de uma rocha em uma exuberante praia da Galícia a vida de Ramón dá uma guinada violenta e sem volta. A paralisia em quase todo o corpo faz com que viva em absoluta dependência dos cuidados de sua abnegada cunhada Manuela (Mabel Rivera). Ramón nunca aceitou uma cadeira de rodas por considerar que isso seria como se contentar com migalhas de uma liberdade que um dia tivera.
Ele está muito bem amparado por uma família que o ama verdadeiramente, isso fica bastante claro. A liberdade (ou a falta dela) é de fato o ponto nevrálgico que alicerça a busca pela eutanásia. Porém, apesar de se tratar de uma questão bastante complicada em qualquer lugar, a influência da Igreja católica na Espanha, assim como no Brasil representa um entrave a mais. Nunca uma instituição se sentiu de tal maneira apta a deliberar sobre uma questão tão íntima como essa, tentando não apenas se imiscuir nos sentimentos das pessoas como usando de seu poder político para agir sobre as leis de Estados supostamente laicos. Além disso, nunca é demais lembrar que a mesma Igreja que condena a eutanásia e as pesquisas com embriões pela sua secular preocupação com qualquer forma de vida, promoveu matanças que deixariam os imperadores romanos mais sanguinários no chinelo. Por isso fica patente a diferença entre a posição eclesiástica e a daqueles que convivem de perto com Ramón. Ambos são claramente contrários a idéia do suicídio, como aliás somos levados a também ser à medida em que nos envolvemos com a história. Porém há que não se confundir a posição de uma instituição normativa antiquada e caduca e a discordância triste de uma família que ama, respeita e não quer perder o ente querido.
Todavia, desde o acidente Ramón segue obstinado pela idéia de cometer suicídio por considerar indigna a sua condição de vida. Para chegar às vias de fato ele recorre a uma organização que auxilia pessoas em posição semelhante (como pacientes de doenças degenerativas graves) na busca pelo direito de morrer dignamente. Enviada por essa organização para ser a advogada a levar o processo adiante na justiça espanhola surge a belíssima Julia (Belén Rueda), cuja motivação pessoal para a empreitada é uma dessas doenças.
Correm-se alguns riscos quando se propõe a tratar de um tema como esses. O mais comum (e para o qual é menor a exigência de talento artístico e maior a de coragem irresponsável) é simplificar a polêmica e esfregar opiniões na cara dos espectadores, notadamente as velhinhas católicas e de extrema direita. Por mais que isso possa ser divertido, a profundidade da crítica que essa abordagem alcança resvala na proporcionada pelo sensacionalismo mundo cão. Outro caminho tortuoso pode ser o da defesa apaixonada de uma determinada tese, com ou sem poesia. Nesse caso a distância para discurso panfletário fica perigosamente reduzida. Por mais bem feita que seja a crítica resultante, coloca-se o espectador em uma posição de passividade assistida de maneira que os mais enfezados podem acabar se sentindo compelidos a uma conclusão indesejada, com efeitos nefastos para o debate salutar.
“Mar adentro” escapa com louvor a essas duas armadilhas (ainda que os desatentos possam não perceber). O feito é conseguido por vários motivos. O primeiro é a escolha cuidadosa das locações e dos atores. A interpretação de cada um bem como sua interação possuí a intensidade correta para capturar decididamente o espectador da trama que se desenrola. Não há como se resguardar daquilo que se descortina diante de nossos olhos. A musicalidade da mistura de sotaques catalão e galego empresta um ar de naturalidade e organicidade ao decorrer dos diálogos enquanto o Turandot de Puccini embala os sonhos de Ramón. Os sonhos, recorrentes, mostram o personagem levantando da sua famigerada cama, tomando impulso e em desabalada carreira saltando pela janela e voando até o mar azul de Coruña. A fotografia, esplendida em todo o filme (a cargo de Javier Aguirresarobe) atinge nessas cenas o seu ápice.
O resultado da aproximação que mencionei é uma identificação tanto com aqueles que convivem com Ramón e que o amam incondicionalmente como com o próprio e o drama da perda da sua liberdade. A rotina animada e cheia de movimento que o cerca, o seu humor refinado e afiado bem como o sincero interesse em ajudá-lo de todos os seus circunstantes, cada um a sua maneira, convencem-nos de que aquela vida é rica e que vale a pena ser vivida. Todavia, temos que nos contentar com nossa opinião assim como o inconformado irmão de Ramón e com o fato de a pessoa em questão não concordar conosco e querer morrer.
Talvez por isso o filme seja grande. Porque assim como em toda grande obra de arte, algo de muito complexo e inerentemente humano é trazido à tona de forma simples, quase mágica. Nesse caso, uma redefinição do amor pelo expurgo de todo seu caráter egoísta e a certeza irrefutável de que, aparte todas as teorias cosmológicas e metafísicas, cabe a cada um arbitrar sobre sua própria existência.

2 comentários:

Anônimo disse...

Mar Adentro conta a história de Ramón Sampedro (Javier Bardem), um ex-pescador que luta por quase 30 anos na justiça espanhola pelo direito de “morrer de forma digna”, desde que passou a viver preso à uma cama após ficar tetraplégico num estúpido acidente numa praia da Galicia. Vale ressaltar que Ramón nunca aceitou uma cadeira de rodas por considerar que isso seria como se contentar com migalhas de uma liberdade que um dia tivera.
A trama se desenrola em sua maior parte na casa aonde agora vive Ramon.
Muitas personagens o rodeiam. Sua amorosa e dedicada família. A representante de uma ONG que ajuda pessoas a terem seu livre arbítrio respeitado: Rosa (Lola Dueñas). Uma advogada portadora de uma doença degenerativa que simpatiza com a causa de Ramon: Julia (Belen Rueda). E mais posteriormente, mas não menos importante aparece uma mulher frustrada sentimentalmente que se apaixona por Ramon apos vê-lo na TV e conhece-lo pessoalmente: Rosa (Lola Duenas).
A inteligência, humor e poder de convencimento de Ramon são incríveis. Paradoxalmente (ou não?) à sua luta ele tenta e consegue mostrar belezas e motivos para que todos em sua volta tenham vontade de viver. Isso fica bem óbvio em diversas situações. O mais engraçado e interessante, porém, é que apesar de todos os recursos intelectuais que esse homem tem, o espectador dificilmente aceita o suicídio de Ramon, tende a se ficar muito mais inclinado a querer que ele continue vivendo por todo bem que ele faz as pessoas à sua volta (mesmo com as dificuldades e o trabalho que sua dependência traz, fica bem óbvio que toda sua família não vê relevância alguma nas dificuldades frente à importância da vida de um ente querido) do que aceitar a decisão de Ramón de perder a vida.
Eu poderia gastar muitas páginas e muitas horas de discussão falando sobre o filme em todas as suas peculiaridades, mas devo ressaltar o que ele realmente tem que minha iniciação cientifica aborda.
O ponto do filme que mais se relaciona com o meu trabalho é: pode um Estado declaradamente laico tomar uma decisão jurídica baseada na moral e religião para obrigar um de seus cidadãos a permanecer vivo em condições – que na opinião desse mesmo cidadão - sejam degradantes, humilhantes?
O suicídio é na Espanha bem como no Brasil um crime. Foi citado no filme que pessoas que tentaram o suicídio na Espanha e falharam não foram processadas, creio eu que no Brasil elas também não os sejam. Apesar de não terem os direitos legais de cometer suicídio, pessoas com capacidades físicas e mentais são capazes de acabarem com suas vidas, seja pulando de alturas elevadas, com armas de fogo, instrumentos cortantes, etc. O que quero dizer, é que mesmo não tendo a permissão do Estado, as pessoas têm o livre arbítrio de fazerem o que quiserem de suas vidas. Ramón e seus advogados defendem em seus discursos exatamente isso: além de perder o controle sobre seu corpo no acidente, ele também perdeu a liberdade de decidir se quer continuar vivo ou não. Coisa que ele apenas precisar pedir permissão ao Estado por ser algo que ele não mais pode fazer sozinho.
Apesar de médicos e a própria medicina quase não serem citados no filme, eu o relaciono com o meu trabalho por abordar uma batalha judicial em que religião e Estado se confundem, e uma pessoa é obrigada a viver mediante uma crença a qual ele não tem fé. É como um dos itens abordados por mim. Por quê os médicos devem seguir certas leis feitas por políticos influenciados por líderes religiosos sendo que por muitas vezes nem os médicos nem seus pacientes têm fé nos dogmas defendidos por essas religiões? Lembrando que o Brasil é um Estado que se considera laico.

Anônimo disse...

só para explicar, esse texto eu fiz pro meu orientador de IPC.
v c ficou bom, bjaum!!